domingo, 26 de outubro de 2008

Lente poderosa, miopia potencializada

Tive uma amiga que esperava ansiosamente os 50 anos para, enfim, desfilar de baiana na Sapucaí. Será que alguém valoriza as próprias rugas, só por elas serem entrevistadas nas eleições? O texto do Marcelino Freire dá pistas que não.

VOVOZONA

Ah! Meu filho. Vem sempre uma TV me ver. Entrevistar. Aos 90 anos eu vou mais uma vez me arrastar. Para votar. Ceguinha. Vou teclar no candidato. De curvada memória. Nem é preciso anotar. Pra quê? Hoje todo mundo vai dizer. Que estou caduca. Em tempo de morrer. Ah! Meu filho. É um cansaço tão comprido. Este meu dever. Cívico. Sei que não tenho mais físico. Mas o povo gosta. Deste lado falido. Heróico. Na hora em que coloco o meu vestido. O mocinho me acompanha. Vai um repórter em minha cola. Até a zona. Ah! Meu filho. Ando tão raivosa. Tão pouco bondosa. Ultimamente. Quando menos esperarem. Ave! O que deu na senhora? Ali mesmo. De repente. O meu protesto. Sei que demorei. Era para ter feito. Desde a época do Getúlio. Ora. Eu sei. Mas a vida vai nos amassando. A gente vai acreditando. Pondo fé. Pois é. No milagre que não vem. Meu Deus! Amém! A pensão do falecido. Caiu no esquecimento. O meu amor. No chão. Debaixo da terra. O tanto que ele era ciumento. Eu não podia me arrumar. Lá vai ela passear. Madalena. Cheia de pluma. Ruga. Cheia de pena. Eu sonhava ser artista de cinema. Ah! Meu filho. Por isso que eu acho. Gosto desta luz em cima do meu osso. Fraco. Mas desta vez. Cansei. Repito. No meio de todo mundo. Foi. Foi. Acocorei. E tudo aquilo que eu guardei. Saiu de mim. Aquele peso. Fedido. Ri. Ri. Ri que suei. Vão dizer que estou no fim. Ah! Meu filho. Mas só agora é que eu comecei.

O velhinho que apareceu ontem na cobertura do pleito estava de terno e gravata porque “era dia de festa”. Só sendo do tempo em que hombridade era lição de casa para ter tamanha consciência cívica. Só sendo de agora para estranhar sua elegância.

Deveríamos todos, claro, aprender com ele. Mas nada justifica a falta de criatividade dos repórteres em volta da urna. Como o voto é obrigatório e o humano, instigante, tenho certeza de que sobram figuras diferentes para focar. Não agüento mais o mesmo personagem. Não entendo a miopia dessas lentes.

Desculpem se fujo do assunto. Perdoem esse post sem dica nenhuma. É que eu acho a mesmice curiosa. Por que olhos diversos enxergam sempre pelo mesmo ângulo?

3 comentários:

  1. Obrigado pela visita,
    parabéns pelo blog e pelo livro.

    abç

    Coisa Semanal.

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  2. Foi um prazer, Rafael. A Coisa Semanal já tá na minha lista de blogs. Até a próxima.

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  3. Ai ai, as pautas repetidas. Falei sobre isso lá no blog tb, no mesmo texto sobre o sequestro. Eu, que atendo a imprensa todo dia, também não consigo entender a mesmice. Como é raro ver uma inovação!

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